terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

A Volta do Neoliberalismo e a Permanência do Extremocentrismo



A segunda metade dos anos 2010-2020, com provável continuidade nos anos 2020-2030, tem tudo para ser um remake dos anos 1990. Social-democratas com responsabilidade pela racionalidade macro-econômica e administrativa (Macri na Argentina, Aécio no Brasil) assumem o poder na América Latina sucateada (termo dos anos 1990) por governos anteriores heterodoxos-patrimonialistas-esquerizantes e  implementam tímidas reformas liberais. Pois foram tímidas as reformas “neoliberais” dos anos 1990. Para os liberais de pura cepa, privatizou-se menos do que se devia, destaxou-se menos que o desejado, enxugou-se a máquina estatal menos que o nescessários, pois os governos não tiveram forças suficientes para enfrentar os interesses corporativistas em jogo dos estado-dependentes ou mesmo não queriam enfrentar, por amor ao intervencionismo e assistencialismo social-democrata. Mas fez-se o mínimo necessário para tirar o país da lama. Paulo Francis, por exemplo, acusava insistentemente FHC de ser molenga.

A volta dos “neoliberais” (um exagero retórico esquerdista, pois de liberais estes governos tem muito pouco) é a volta de governos que fazem ajuste fiscal meia-bomba, botam de pé o tripé macroeconômico, privatizam um pouco, enxugam a máquina de forma tímida e abrem relativamente o mercado. Mas, inobstante a tibieza do caráter liberal de suas ações, são acusados pela esquerda de neoliberais (um termo dos anos 1990 ressuscitado na campanha de 2014 que promete voltar com toda a força), capachos dos interesses do grande capital, títeres do imperialismo norte-americano, do Consenso de Compadre Washington, e por ai vai.

Se um governo “neoliberal” nos tomar de assalto eleitoralmente, como ocorreu recentemente na Argentina, a faxina da vampiragem burocrático-patrimonialista no Brasil será, todavia, uma tarefa incomparavelmente mais hercúlea que no país de Maradona: vai ser preciso varrer, de um contingem de 113 mil comissionadosnos Ministérios, que consomem 214 bilhões do Orçamento, um número bastante elevado de marajás (termo dos anos Collor).

Obviamente, não precisamos esperar que um governo chuchu tucano faça a reforma administrativa de forma ampla e irrestrita (expressão da época da Ditadura Militar). Mas temos agora uma novidade. A novidade é que há uma massa de contestadores liberais na mídia, na internet e não apenas meia dúzia de autores isolados e institutos liberais com força idêntica aos dos rotery clubs do interior. O futuro governo chuchu-social-domocrata-fabiano- liberal- meia-boca vai enfrentar um inferno muito maior do que sofreu o governo FHC, com intensos ataques às esquerdas e às direitas. Passeatas de 100 mil às esquerdas e às direitas. Blogs, blogs, blogs, às esquedas e as direitas. Dossiês caymans às esquerdas e às direitas.

A direita true neocon também não deixará em paz o futuro governo chuchu-social-democrata-fabiano-liberal-meia-boca acusando-o de dar estar vendido ao esquema globalista, dar dinheiro aos sem terra e ao movimento gaysista, de manter o estamento burocrático-gramisciano (o que será verdade em parte) e de passar a mão na cabeça do Foro de São Paulo que só estará saindo de cena taticamente para reorganizar suas divisões e voltar mais forte, a guisa dos nacionalistas alemães após a Primeira Guerra.

Acossados por ambos os lados do radicalismo ideológico não restará ao nosso futuro governo chuchu-social-democrata-fabiano-liberal-meia-boca permanecer onde todos os governos brasileiros costumam permanecer: no extremo-centro, fazendo pequenos avanços e conservando as velhas mazelas, as quais direitas e esquerdas têm certa razão de denunciar.

terça-feira, 1 de abril de 2014

QUEM GOVERNA AS MENTES DO MUNDO SEGUNDO O BIG DATA?


Observo, surpreso,  pessoas simples e sem leitura no interior do Brasil dizendo sobre a rara estiagem deste último verão: é culpa do aquecimento global. Obviamente, não leram isso em jornais, porque não leem jornais. Tampouco tiraram essa impressão da internet, porque não acessam a rede mundial de computadores. A fonte da crença destas pessoas no global warmming como fonte da estiagem é, obviamente, a televisão, atuando de forma quase subliminar, pois, decerto, não prestam atenção a reportagens sobre assuntos como o aquecimento global.

A ideologia aquecimentista adquiriu uma capilaridade fantástica, quase semelhante a da falsa ideia de que o aumento do nível de renda dos mais pobres se deveu, preponderantemente, aos oito anos do Governo Lula, crença a cuja difusão se deve a eleição do pseudópodo luliano.

Está aí demonstrado, na experiência cotidiana, o poder dos próceres desta ideologia, dentre eles Al Gore, que figura em uma pesquisa de 2013 do instituto alemão Gottlieb Duttweiller Institute como o “intelectual” (no sentido Paul Johnson, claro) mais influente do mundo numa lista de 100 (http://www.gdi.ch/de/Think-Tank/Trend-News/Detail-Page/The-global-thought-leaders-2013).

A fonte dos dados da pesquisa não poderia ser melhor nos dias que correm: o Big Data. Leva em consideração o número de menções aos intelectuais nos sites, acadêmicos ou não, na blogsfera, nas redes sociais, ou em publicações impressas divulgadas na rede. Não é possível que, depois das velozes, impactantes e irreversíveis revoluções virtuais da década de 2000, um autor muito influente não seja muito mencionado na web. O Big Data, parece-nos, é o melhor termômetro da influência nas discussões públicas de um autor ou de uma ideia e os critérios da pesquisa deveriam inspirar no Brasil pesquisas semelhantes.

A metodologia da pesquisa, contudo, é precária por 3 motivos: (1) Ela leva em consideração apenas  “infoesfera” de língua inglesa, ou seja, o que foi postado na internet em outras línguas não é levado em consideração; (2) ela mediu a influência de 200 autores pré-selecionados, entrando aí a subjetividade do universo cultural de seus autores e (3) ela não está infensa a popularidade imediata, passageira, de certos autores, embora tenha-se tomado precauções quanto a isto. Diante disto, o mais exato seria dizer que ela mede predominantemente a influência predominante de intelectuais no mundo anglo-saxão e que mede a influência “neste momento” de tais autores.

Contudo, é evidente que os autores mais citados em língua inglesa devem ser, de fato, os mais citados no mundo. Então é muito provável que uma pesquisa que levasse em consideração menções na internet em todas principais línguas do mundo não teria resultado muito discrepante. A pesquisa também não deve ser considerada a mera listagem dos fogos-fátuos do momento.  Isto porque nossa experiência de leitores, na rede ou fora dela, nos mostra que a influência de intelectuais como Slavoj Zizek, Noam Chomsky, Steven Pinker, Daniel Dennet, Richard Dowkins, Stephen Howking não pode ser considerada passageira, coisa de meros quinze minutos de fama fugaz, pois há quanto tempo esses nomes não assomam aos nossos olhos sempre que abrimos uma publicação cultural?

A tabela de divulgação dos autores associa-os à nacionalidade, à área de atuação e à principal ideia defendida em suas obras.

Quanto às nacionalidades, nenhuma surpresa: os anglo-saxões dominam, seguidos pelos europeus continentais. O Brasil não está fora. Tem um surpreendente representante na 44ª. colocação: o confuso cientista político harvardiano  Roberto Mangabeira Unger, que além da ideia de transpor as águas do Rio Amazonas, através de ductos, para o sertão nordestino, defende a “empowered democracy”, seja lá o que isso for. A influência de Mangabeira Unger no Brasil é quase insignificante e seu nome aparece na lista porque ele é um dos poucos brasileiros conhecidos no universo anglo-saxão e por causa dos problemas metodológicos relatados parágrafos acima.

Quanto à área de atuação, predominam os filósofos e cientistas, sejam estes das humanidades (sociólogos, economistas, filósofos e historiadores), sejam das ciências naturais (da Física e das Ciências Biológicas, predominantemente). Das humanidades temos lá: Habbermas, Peter Singer, Slavoj Zizek, Daniel Dennet, Noam Chomsky, Steven Pinker, Eduardo Galeano. Das ciências naturais: Oliver Sachs, Peter Higgs (certamente catapultado recentemente pelo seu bóson), Stephen Howking, Richard Dowkins. Todos cientistas da linhagem tradicional. Defensores de alguma ciência de paradigmas alternativos são poucos, como Rupert Sheldrake, criador da teoria da ressonância mórfica.

Depois dos cientistas, temos meros militantes políticos (poucos), como o próprio cabeça da lista e George Soros. Depois, muitos inventores, inovadores e empreendedores do setor tecnológico: Elon Musk, o sexto da lista, John Craig Venter, do projeto genoma, Raymond Kurzweil, dentre outros.

A literatura está representada por uns poucos, dentre eles Mário Vargas Llosa, Salman Rushdie, e Gabriel Garcia Marques. Surpreende a falta de Paulo Coelho ou de Dan Brown.

No aspecto político parece-nos haver um predomínio de social-democratas, fabianos, defensores do alargamento da democracia ocidental, globalistas, apóstolos do aquecimento global, keynesianos, frankfurtianos, inimigos da supremacia norte-americana. Saltam os olhos os nomes de Habbermas, George Soros,  do próprio Al Gore, de Jeffrey Sachs, de Noam Chomsky, de Nicholas Stern (teórico da economia do aquecimentismo), de Cristina Romer (defensora do novo keynesianismo). Um único revolucionário mais visível, e confuso quanto a seus objetivos, ocupa a quarta colocação: Slavoj Zizek.

Quanto a este, um parênteses. Dissemos que a lista é um termômetro das maiores influências intelectuais, mas nem sempre essa influência é visível. É difícil imaginar, por exemplo, como a teoria complexa e vazada em árduo academiquês de Habbermas possa influenciar movimentos globais organizados, por exemplo. Mas as ideologias de Zizek, embora tão confusas quanto as de Habbermas, tem um caráter mais panfletário, apelam a símbolos aglutinadores de radicalismos contra estruturas globais, e, portanto, podem ser visualizadas em manifestações como o occupy wall street, ou nos black blocks brasileiros. Tanto quanto as teorias de Zizek elas tem objetivos e inimigos vagos como o capitalismo global.

Não se vê na lista neo-cons e libertarians,  ou eurasianos-duguinistas. Isso nos mostra que estas correntes de pensamento político, embora já globais e ganhando força graças à própria rede mundial de computadores, permanecem fora do mainstream ideológico. Por isto parecem-nos ainda impotentes para gerar alguma transformação importante no mundo real, ou para formar grupos de pressão fortes. Digo isso a nível mundial, já que neocons e libertarians, nos EUA, e eurasianos, na Rússia, já são forças consideráveis como grupos de pressão locais.

No campo cultural, predominam correntes de ideias como o new atheism de Dennet e Dowkins, ou aquelas calcadas no evolucionismo, no ecologismo, no naturalismo e  no vegetarianismo. As religiões estão mal representadas. Um único teólogo figura na lista: Hans Kung que consta como católico não enquadrável no mainstream  ideológico do catolicismo, nas correntes tradicionalistas ou em assemelhadas à teologia da libertação.

Interessante é cotejar a lista dos 100 mais com a esquemática do Prof. Olavo de Carvalho sobre as três forças que disputam o poder global. O predomínio de ideologias que favorecem o “esquema globalista” -- entendido como fortalecimento do poder das organizações internacionais, apoiado na democracia (formalmente), num semi-liberalismo econômico, e num forte viés secular -- é esmagador.

Em resumo, podemos concluir que pesquisa traça o perfil da influencia dos principais intelectuais do mundo, mormente no mundo anglo-saxao. Ela traça o perfil do mainstream. Alem disto, devemos levar em consideração que ela capta a parcela de influenciados mediamente intelectualizados, nada dizendo sobre o que pensam as massas. Mas como ressaltamos no inicio do artigo, por um fenômeno de difusão quase imperceptível, elas ganham capilaridade, e de alguma forma, passam a compor o imaginário e o universo de crenças de pessoas simples nos últimos rincões do mundo sem nenhum contato direto com elas.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A BIOGRAFIA DO VERKOVENSKI CAIPIRA E AS ILUSÕES ARMADAS

O menino que, em meados da década de 1950, teve a ousadia de se declarar agnóstico para a sua tradicional família mineira, e que não via a hora de deixar o tédio de Passa Quatro, só aliviado com traquinagens pour empater les campagnards, tornou-se, inegavelmente, um dos agentes políticos mais influentes das últimas cinco décadas no Brasil, sempre presente no palco dos acontecimentos políticos mais significantes, embora seu legado tenha sido extremamente negativo.

Como não? Mal chegou a São Paulo, vindo de uma comunidade insignificante, logo e tornou-se presidente da União dos Estudantes de São Paulo no período crítico dos primeiros anos da Ditadura Militar. Namorou a revolucionária comunista mais afamada de nossa História, nossa Jesenska-Pollac, Iara Iaverber, bela e disposta a matar, que mais tarde se tornaria esposa do segundo revolucionário mais famoso, Carlos Lamarca. Após o AI-5, comandou, juntamente com Vladmir Palmeira, em 1968, um congresso estudantil clandestino, em clima e paisagem de Woodstock, do qual resultou o maior comboio de estudantes presos da história nacional. Preso, era tão importante para o movimento revolucionário que foi um dos trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, num dos episódios icônicos do período, o maior êxito do movimento revolucionário e o maior vexame da Ditadura Militar. Deportado para o México, logo se tornou íntimo do Comandante e despertava a inveja de seus companheiros pelos privilégios. Era então um dos principais soldados do movimento revolucionário comunista mundial na América Latina. Retornou ao Brasil e viveu aqui, clandestinamente, a maior parte de década de 1970, sua década perdida, na qual não fez nada de relevante ao que se saiba, tirante a façanha de ter permanecido vivo, quando a maioria dos exilados que voltaram foram executados sumariamente pela “tigrada”, fato que gerou mais suspeitas entre os companheiros de que pudesse ser informante. Mas eis que veio a anistia, deu bye bye para a bela loira do interior do Paraná com quem vivia em concubinato escondendo-lhe a verdadeira identidade e retornou ao centro dos acontecimentos.

Em janeiro de 1980 dá-se um dos encontros mais decisivos e emblemáticos da história recente do país: Frei Betto leva-o para conhecer Lula. Foi naquela tarde em São Bernardo do Campo que a estrela começou a subir. As três figuras representam três das quatro forças sociais fundamentais na fundação do PT: o movimento revolucionário comunista, a dissidência católica da teologia da libertação e o movimento operário, representado ali pelo seu comando supremo, “O Clube do Mé”. Faltou apenas um Professor marxista da USP ou UNICAMP. Daí em diante, o Zé, que teve as mãos amarradas durante todos os anos 1970, nadou de braçada: foi o principal responsável pela criação da máquina partidária mais poderosa e mais profundamente enraizada na sociedade civil do país. Neste encontro histórico, a virtú de Zé Dirceu encontrou sua fortuna. Prosseguiu: foi um dos responsáveis por quase eleger Lula em 1989. E só não logrou elegê-lo porque Lula, em razão de “pureza” ideológica, não aceitou as alianças que Dirceu propunha com gente sórdida do PMDB. Eleito deputado federal, era tido no início dos anos 1990 como um dos bastiões da ética do país, herói do combate à corrupção. Duelou duramente com o apologeta de Collor, Roberto Jefferson. Investido hipocritamente neste papel de udenista-petista, foi um dos principais responsáveis pela queda do primeiro Presidente da República eleito pelo voto direto e de diversos deputados federais. Pari passu, montava já um vasto esquema de finaciamento público ilícito de seu partido, sem o qual a agremiação não chegaria ao poder. Nas horas vagas aproveitava para casar e descasar, dedicando-se também a diversas relações extra-conjugais. Atazanou o quanto pode os governos Itamar Franco e Fernando Henrique.  Foi um dos inventores do Fora FHC/Fora FMI que em 1998/2001 era o Fora Tudo das manifestações de junho de 2013. Elegeu Lula em 2002.  Tornou-se o único Ministro da Casa Civil com poderes de Primeiro Ministro, a ponto de Lula reclamar: “O Zé Dirceu acha que o Governo é dele.” Tinha o poder de nomear e exonerar quem quisesse do primeiro escalão do governo.  Até que caiu em desgraça em 2005, quando seu rival do início dos anos 1990, flagrado na via do reprochável, resolveu alcaguetar o esquema de financiamento público ilícito do PT e o esquema de compra de consciências partidárias nada lincolniana. Por muito pouco, não cumpriu a promessa que fizera a sua mãe, Dona Olga: a de vestir a faixa de Presidente da República.

Tudo isso é narrado em detalhes na biografia “Dirceu” (Editora Record, 2013) de Otávio Cabral. O livro, como é do início deste ano, não termina com a prisão do nosso Verkovenski de sotaque caipira, mas com duas cenas prosaicas e ternas: numa, Dirceu com a mamãe, velhina, no interior de Minas; noutra ele fazendo a filha ninar através do skype. Mas, antes do fim, temos uma cena de coluna social muitíssimo interessante: o agnóstico José Dirceu, logo após a cassação de 2005, viaja a Santiago de Compostela na companhia de Fernando Morais e Paulo Coelho. Mineiro debochado, se colocou a fitar com um sorrisinho sardônico o mago falando de suas bruxarias.

Não há como negar: desde sua suspeita eleição para a UEE de São Paulo, em 1966, até 2005, Zé Dirceu sempre meteu a mão em nossa história e deixou digitais. Se a história humana é feita pelas decisões de seres humanos concretos, na linha de Max Weber, e não por forças abstratas, na linha Hegel, Marx e Braudel, ele é, desde 1960, um dos principais co-autores da triste história destas plagas. Dificilmente o PT, a máquina partidária mais poderosa do país, teria se tornado tão forte sem ele. Diante desta constatação, é indubitável que se trata de uma das biografias políticas mais importantes dos últimos 50 anos, ainda que para ser apresentada à juventude como exemplo do que não fazer.

Mas, certamente, o Zé não terá melhor sorte no tribunal da história do que a que teve perante o STF. A não ser que queiram forçar a barra e transformá-lo num Mirabeu de Ortega y Gasset, ou coisa semelhante.

Em seu opúsculo, “Mirabeau, ou o Político”, o filósofo madrilenho, vaca sagrada dos conservadores, faz sua apologia deste ícone moderado da Revolução Francesa. Mirabeau, como Dirceu, fez o diabo. Corrompeu, fez vergonhas financeiras, mentiu, trapaceou, mas por um motivo nobre: alcançar uma posição política privilegiada para defender uma Monarquia Constitucional que pudesse colocar freios ao Terror, ou, nas palavras de Gasset, fazer a revolução e a contra-revolução. Progredir e conservar. Mas, uma vez que o caminho de Mirabeau ao Palácio foi bloqueado, ele “inveredou pelo secreto e pelo tortuoso.” Homens excepcionais assim, “magníficos animais”, defende Gasset, estariam dispensados da moralidade comum ou da pequena moralidade:

“Em vez de censurar o grande homem porque lhe faltam as virtudes menores e padece de pequenos vícios, em vez de dizer que ‘não há grande homem sem virtude’, em vez de concordar com o homem comum, seria oportuno meditar sobre o fato, quase universal, de ‘não há grande homem com virtude.”

Lincoln comprou consciências no Capitólio para aprovar a 13ª. Emenda e abolir a escravidão. Mas qual era o motivo nobre de Dirceu para fazer o que fez? Nas primeiras décadas, era o Cubão. Depois, o que? A justiça social? O Bolsa Família? O fim da pobreza? Falta-lhe o motivo nobre ou a sua consumação para que a história o absolva como um Mirabeau de Ortega y Gasset. Sobra apenas a libido dominandi. Uma vasta história de fraudes sem nenhum grande resultado.

Mas essa relevância histórica toda que atribuo a Zé Dirceu não aparece na obra mais vívida sobre os anos de chumbo lançada na última década: a tetralogia de Elio Gaspari, compostas pelos livros “As Ilusões Armadas ou A Ditadura Envergonhada”; “As Ilusões Armadas II ou A Ditadura Escancarada”; “O Sacerdote e o Feiticeiro ou A Ditaduta Derrotada” e “O Sacerdote e o Feiticeiro II ou A Ditadura Encurralada”. Os dois primeiros de 2002, os dois últimos de 2003.  Na alentada obra de história dos bastidores, Dirceu só aparece na famosa fotografia em que está prestes a embarcar para o exílio com os companheiros. Nem mais uma menção.
Tal como ocorre com a biografia de José Dirceu, em as “Ilusões Armadas” e “O Sacerdote e o Feiticeiro” temos a História contada sob a perspectiva que realmente importa: a dos pensamentos, dos atos e das decisões concretas de pessoas concretas, e não sob a perspectiva de causas impessoais. A obra partiu de um trabalho acadêmico em que Gaspari intentava, no Wilson Center for International Schoolars, de Washington, compreender porque Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, o Alemão e o Corca, o Sacerdote e o Feiticeiro, pelos quais Gaspari não esconde a simpatia e a amizade, decidiram desligar os aparelhos que mantinham a ditadura viva. Só no 4º. e no 5º. Volume, contudo, o autor se dedica a relatar a série de atos e decisões destes Generais que culminaram na derrocada do regime.

Trata-se de uma história autenticamente imparcial, a-ideológica, e impiedosa. Tanto com a esquerda quanto com a direita. O mal naquele momento era o que vem expresso no título dos dois primeiros tomos: “as ilusões armadas.” A ilusão de que a esquerda radical poderia chegar a uma revolução comunista no Brasil pelas armas; a ilusão da direita de que precisaríamos de um golpe militar e da abolição da legalidade para combater esse mal. No meio, temos a esquerda e a direita democráticas que foram tiradas do jogo.

Os preparativos para a revolução comunista financiada por Cuba no Brasil começam ates de 1964, com as viagens de Francisco Julião à Cuba, onde foi convencido pelo Comandante a iniciar um foco guerrilheiro na terra de Santa Cruz. Nos primeiros anos do golpe militar, o comando da sucursal brasileira da revolução continental passa a Leonel Brizola, “El Ratón” (esse apelido Gaspari lhe poupa. Reza a lenda, Brizola embolsou dinheiro de Cuba, motivo pelo qual o Comandante lhe dedicou a alcunha). Neste segundo momento, um dos principais focos foi montado na serra do Caparaó. Fiasco total. Com o AI-5, e sob o pretexto de combatê-lo, surge uma miríade de organizações guerrilheiras, a principal delas comandada por Carlos Marighela, a Aliança Libertadora Nacional - ALN. E’ o período critico da luta armada.

Esse velho comunista ítalo-baiano, o mais ousado e sanguinário de nossos comunistas, foi executado numa emboscada nas ruas de São Paulo, pelo sádico Dr. Fleury, com intenso prazer. Era o inicio da derrocada. Esta terceira fase do movimento revolucionário dura de 1968 a 1974 com a morte do último homem no Araguaia, onde se instalara a guerrilha rural do PC do B.

Gaspari não é condescendente com os crimes desta inútil tentativa revolucionária. Mas os relatos de abusos pesam mais no lado da balança em que está o regime militar. Os principais vilões, porem, não estão no alto escalão: Castelo Branco era um genuíno democrata titubeante para quem a ditadura devia durar apenas 2 anos, com a finalidade de apenas concertar as coisas e eliminar comunistas e golpistas. Costa e Silva, este sim, era um burrão perigoso com sangue nos olhos, mas so se decidiu pelo AI-5 pressionado pela linha dura. Médice, Geisel e Figueiredo não acreditavam na democracia: o povo não sabia votar. Jânio era a maior prova. Geisel acreditava sim que uma elite de melhores homens, tecnocratas como seu parceiro Golbery, deveriam decidir os rumos da nação, sem consulta popular. Geisel também era teoricamente favorável `a tortura em casos excepcionais. Contudo, Geisel, Golbery e Figueiredo pretendiam devolver a democracia plena ao Brasil e prepararam o caminho para a abertura democrática. Principalmente Geisel e Golbery, Figueiredo era só uma cria dos dois.

Pois bem, os maiores vilões estavam no meio: a linha dura. Esta era representada principalmente pelos médios oficiais: majores, tenentes-coronéis, coronéis, generais com poucas estrelas. Foram eles que forçaram cada guinada mais autoritária: o prolongamento do governo de Castelo Branco, o AI-5, a lentidão da abertura. Cometiam atentados e quarteladas para desestabilizar o Governo sempre que este apontava para o relaxamento do regime. A estes atos de desestabilização do governo com vistas ao endurecimento sem ternura, Gaspari da’ o nome de “anarquia.” Foram estes “anarquistas” que sempre deram respaldo à “tigrada” (sargentos, tenentes e capitães condutores de inquéritos militares e delegados de polícia civil) para torturar, executar sumariamente, enfim, fazer o terror de direita. Queriam sempre o recrudescimento da ditadura. Sempre mais sangue de comunistas. Chegaram a lançar um jornal com a figura do moderado Golbery enforcado. Golbery, ídolo de Glauber Rocha, que o compreendeu como ninguém, era o General mais odiado pela tigrada e o General que mais a odiava.

Os Generais de alto escalão, a cúpula do governo é que punham freios ao apetite de sangue da tigrada, mas lavaram as mãos um sem-número de vezes. Segundo a tese de Gaspari, foi Geisel quem defenestrou de vez a linha dura e o episódio mais significativo teria sido a demissão de seu Ministro do Exército, Sílvio Frota, o líder da tigrada.

Roberto Campos, Ministro do Planejamento de Castelo Branco, e um dos responsáveis pelo milagre econômico, diz em suas memórias, “Lanterna na Popa”: “tínhamos duas escolhas: anos de chumbo ou rios de sangue.” Será mesmo? Tertium nom datur? Gaspari não responde à questão, mas dá a entender que, definitivamente, não!

A questão de Roberto Campos é a fundamental sobre 1964: o golpe, as cassações, a suspensão do habeas corpus e dos direitos fundamentais, a censura, a tortura, as execuções sumarias, a ilegalidade eram realmente necessários para a contenção das pretensões revolucionárias da extrema esquerda que poderiam, de fato, resultar em rios de sangue? Um governo democrático, dentro das regras do Estado Democrático de Direito não poderia realizar o mesmo com o idêntico êxito?

Não se sabe. Bem, há indícios de que se não houvesse um golpe de direita, um golpe de esquerda pudesse ser intentado, facilitando as coisas para a extrema-esquerda. Jango, esse democrata incontroverso, tinha suas pretensões golpistas, narra Gaspari no primeiro tomo.

O fato é que a ditadura militar aboliu, com uma eficiência ímpar na América Latina, e com menos violência em comparação como outras ditaduras latino-americanas, a chance de uma revolução comunista armada no Brasil. E não deixou resquícios. Mas para isso cometeu atrocidades. A tortura campeava. A execução sumária de exilados que retornavam clandestinamente ao Brasil, da qual Dirceu, escapou, era norma tácita. No Araguaia, o jus bellum, o conjunto de normas fundamentais da guerra, foi suspenso: a ordem era exterminar todos, mesmo os que se rendessem. Mesmo os meramente suspeitos. E assim foi feito. Como em Canudos, não sobrou um só! Políticos inofensivos foram caçados. Inocentes foram martirizados. Graças a tudo isto, não temos hoje uma FARC atuando em território nacional. Mas não poderíamos ter contido as pretensões revolucionárias sem atrocidades e dentro do estado democrático de direito?

Dizer que os anos de chumbo foram necessários para se evitar os rios de sangue é uma suposição. Mas a História é feita de apostas, de decisões sobre o incerto, com base em conjeturas sobre o futuro imprevisível. O conservador americano Patrick J. Buchanan acusa Churchill de responsável por duas Guerras Mundiais “desnecessárias” (vide “Hitler, Churchill e a Guerra  Desnecessária”, Nova Fronteira, 2008). Hiroxima e Nagazaki eram mesmo necessárias? Truman e Churchill apostaram que sim. Chega sempre o momento em que os homens que decidem o destino do mundo, conjeturando que a inação ou uma decisão mais branda seria desastrosa, decidiram-se por ações drásticas. E o homem político, nos diz Ortega y Gasset, é aquele que não tem escrúpulos: sua função é, quando todos vacilam, decidir sem medo, dó ou piedade.

O menino de Passa Quatro acabou se tornando um destes “inescrupulosos”, mas que grande obra desculpa sua falta de escrúpulos?


terça-feira, 26 de novembro de 2013

INTERPRETAÇÕES ONÍRICAS, GOZAÇÕES FILOSÓFICAS, MINISTROS, DEMÔNIOS, PADRES E MÉDICOS.

Vou escrever sobre o sonho que tive ontem à noite. O Ministro Joaquim Barbosa apareceu no meio. Tinha expedido um mandado para eu cumprir. Eu recebi a Excelência no meu trabalho, que não era o onde trabalho, mas o puxadinho do quintal da minha infância onde eu sempre brincava. Tinha um outro sujeito na história, mas não lembro quem era. O Ministro veio até a mim para me acompanhar no cumprimento do mandado.

Fomos à Brasília de carro. Não sei para quê ele veio de lá me buscar e voltamos para lá. Ficamos nas portas de uns prédios vermelhos e marrons esquisitos (não adianta eu querer descrever. Não dá.). Eu queria ver a praça dos três poderes. 

De repente, fomos até a casa de minha mãe. Era dia chuvoso e escuro. Mas a fachada da casa não era a da minha casa e o lugar não era nenhum lugar parecido com qualquer outro onde eu já tenha estado. E o R., meu brother do ensino médio, estava lá na porta, o cumprimentei, e ele me acompanhou. E entramos. Aí já estávamos na minha casa. Eu sempre sem graça com o Ministro. Ele tratou minha mãe de Dona Maria, fez piada, e foi cordial. 

Mas logo em seguida estávamos lá fora e o Ministro se colocou de cócoras e começou a comer barro com feijão e uma água lodosa no chão. O sonho acabou.

O que isso significa? Nada.

Creio que há sonhos premonitórios. Creio que há avisos sobrenaturais em sonhos. Creio que sonhos são também manifestações do subconsciente. Mas este, que era? Uma mera composição surrealista com base em fragmentos de imagens que recebi estes dias. Tinha lido sobre o Seu Joaquim antes de dormir. Tinha falado com o R. estes dias.

Mas por que o Ministro se abaixou para comer barro com feijão? Tem algum gozador dirigindo nossos sonhos?

Mudemos de assuntos. De Ministros a Demônios.

Eu comprei um livro do Vilém Flusser porque Olavo de Carvalho o tem em alta conta e porque MVC recomendou “A História do Diabo.” Minha mãe, católica praticante, com segundo grau feito nas coxas, e nenhum livro na cabeça, ficou muito preocupada com isso na época, mas eu, para despreocupá-la, falei que era a mais pura bobagem literária, que era só um livro idiota e ficou tudo bem.

Comecei a ler. Larguei. Ontem peguei de novo e não pude deixar de morrer de rir. Que gozador filosófico danado! Na introdução, ele começa definindo o diabo: é o pai da história. A história só existe neste mundo físico, na eternidade não há história. Assim, o diabo é a força que quer nos manter presos neste mundo. Já Deus é o princípio que quer nos desvincular dele e nos conduzir para o mundo transcendente. Nada difere do que prega a Igreja. Vou à diante. Ele então diz que as artimanhas do diabo para manter-nos neste mundo são os sete pecados capitais. Mas eis que então ele propõe um hierarquia dos pecados capitais que vai da luxúria à preguiça – o mais grave segundo ele. Luxúria é o princípio da vida,  lust for life, e preguiça é a desistência dela, quando cessa o impulso vital. Luxúria e preguiça são os dois principais, os demais são derivados: por exemplo, a ira deriva da interrupção da luxúria. Mas, bem, em que se baseia esta hierarquia? O alemão gozador responde:

“A hierarquia proposta por este livro é puramente acidental, levemente apoiada sobre a “historicidade” da natureza, e informada por preoconceitos freudianos.”

Caí na risada. Trata-se de um gozador filosófico. O livro é uma paródia de grandes teorias gerais da história. O tom é o mesmo com que Machado de Assis descreve o Humanitismo.

Não sei se as demais obras de Flusser tem o mesmo caráter, mas quanto a este não há dúvidas: gozação filosófica, paródia. Um livro inteiro só para isso. E muita gente deve ter levado a sério.

Esse tipo de gozação, vinda de um homem sério e erudito, muito me encanta. Lembra um franciscano holandês de minha aldeia, amante de botequins e simpatizante do carnaval fora de época, mas homem de sólida cultura e sermões impactantes, daqueles que puxam a orelha íntima do melhor dos cristãos. Era calvo, de barbas ruivas e olhos azuis. Sátiro franciscano, amava os contos do vigário e praticava-os toda páscoa, dizendo, por exemplo, que o padre da outra paróquia iria sortear um televisor em cores na próxima missa lá. Nossa aldeia sempre foi muito quente, mas, num dezembro de calor extraordinário, mandou pregar um cartaz na porta da Igreja: “se vocês acham que esta cidade é quente, aguardem o fogo do Inferno!” Enquanto eu, que tinha por volta de 8 anos, me assustava com o cartaz na porta, o gozador de batina marrom refrescava a garganta com moderadas goladas de chopp no bar ao lado.

Temo que Dante Aligheri colocaria gente como eu e esse padre naquele lugar cujo nome é melhor não dizer.  Quanta gente Dante Aligheri colocou lá, meu Deus! Até o coitado do Celestino V, precursor de Bento XVI. Para lá eu também já fui conduzido em sonho, por culpa da gula. Foi mais ou menos assim:
Peri, nosso taberneiro predileto, me levou até a cozinha do bar em Carangola acenando com o braço (“Vem cá”) e lá me abriu o alçapão. “Desce”, ele disse. Cai centenas de milhares de quilômetros. O poço era fundo e interminável, mas dei numa espécie de salão majestoso. “Aquele homem ali?” Caí de joelhos e disse: “Santo Padre!”

Bento XVI já não se situava mais no tempo-espaço tal como o conhecemos. Pedi para beijar-lhe a mão, o que me concedeu. “Glorioso timoneiro!”, eu disse. Em resposta, com olhar sério, o Papa me disse que eu seria levado ao 3º círculo onde penam os que pela gula foram condenados.

“Mas Papa, me perdoe, você sabe que comprei seu livro em Aparecida-SP e que sempre falei mal do relativismo, e sempre comprei paçoquinha no sinal vermelho para ajudar os pedintes, tratando-os com toda cortesia”. Em vão. Ele tinha uma carta de ordem do Supremo. Adentramos o 3º círculo. Lá penavam os que de cerveja e cigarro tinham abusado enormemente. Tinham guelras nos pescoços e abriam a boca mostrando a garganta depois de dizer isto aqui: “Vejam, brotaram-me guelras, vem o médico todos os dias me castigar com químio.”

O médico chefe, neste momento, chegou. Bento XVI me alertou: não se deixe ludibriar, ele assume a forma do Dr. Drauzio Varela, mas é o mesmo que reina no último círculo destas plagas. Satã-Drauzio Varela era para mim surpreendente, por mais que o nobre médico fosse quase tão feio quanto.

“Aqui padecem os que no consumo de cerveja e cigarro foram imoderados. Avisei no Fantástico”, falou o médico das trevas.

Em seguida disse: “vejam!” E após abrir o notebook mostrou no data-show uma cena de abril de 2005, em Roma. Um nobre sacerdote padecia. Poucos minutos depois, o carmelengo e bateu-lhe três vezes na face com o martelinho de prata dizendo: “Karol Wojtyla. Karol Wojtyla. Karol Wojtyla.” O padresinho foi em seguida carregado por anjos para as regiões celestes. Mas o que Dr. Drauzio queria mostrar não era isto. Apertou o botão REW de seu data-show, agora transformado em vídeo-cassete, e mostrou-nos a cena que assim se narra:

Dr. Drauzio adentrava aquele solene quarto do Vaticano com sua bandejinha de prata (sobre a qual pousavam três seringas médicas) assoviando como a falsa enfermeira caolha de Kill Bill. E sugeriu ao Papa agonizante: “A eutanásia, Padre. A eutanásia, Padre.” O Padre fez um gesto para afastar a bandeja de prata, mas eis que... Bem, não sei quem meteu João Grilo na história, mas ele apareceu como um romeiro nordestino e interrompeu Drauzio Varela: “Por que você não pega essa eutanásia e enfia...”  

Acabou-se o sonho bruscamente. Assim relatado, prometo ser a última vez que trato em tom jocoso de assunto tão sério.



segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A TESE FILOSÓFICA DO DR. BARROSO

O Dr. Luís Roberto Barroso chegou a sua mansão no Rio de Janeiro fatigado após a sabatina no Senado que avaliou se ele é possuidor da reputação ilibada e do notório saber jurídico requeridos para que venha a ocupar uma das cadeiras do Supremo Tribunal Federal. Ainda vestido qual Pontes de Miranda, recostou no divã, dispensando a jacuzzi de costume por ser inverno, e sonhou.

Súbito, estava na mesma sala de audiências do Senado Federal onde há pouco fora interrogado. Ficou estupefato, todavia, ao perceber que, em vez da turba loquaz e agitada de senadores a sua frente, tinha apenas uma figura: o mesmo afável visitante das trevas que aparecera a Ivan Karamazov, vestido como um cavalheiro russo, à moda 1.860, aproximadamente. A figura lhe era familiar, eis que fruto de sua própria construção imaginária ao ler o romance no início da década de 1970, quando ainda frequentava as arcadas de sua faculdade de Direito. Porém, o cavalheiro de longa barba e cabeleira encanecida tinha mais vida, mais tridimensionalidade, definição e brilho, além de uma voz roufenha e sussurrada emprestada ao Colonel Kurtz hollywoodiano, provavelmente. A personagem lhe sorria e ele permaneceu atônito até que notou ao seu lado o Presidente do Senado Federal, curiosamente agora não mais o Sr. Renan Calheiros, mas o próprio Dr. Ulisses Guimarães, pálido e com olheiras acinzentadas sob órbitas encovadas, que anunciou: “Com a palavra o Senador Lúcio Silvério dos Reis.”

“Serei breve, Sr. Presidente.” E então, fitando o interrogado com um sorriso sardônico e segurando com indicador e opositor esquerdo a haste delgada do microfone, arguiu:

- A pergunta é muito curta e direta, Dr. Barroso. Pois bem, dia a dia o seu camelo de erudição e riqueza engorda, então como passará pelo buraco da agulha?

A reação do sabatinado foi de imediata irritação. “ Senhor Presidente, não posso admitir esse tipo de indagação. Não guarda correlação com a minha nomeação ao Supremo. Trata-se de um desrespeito  com minha carreira e minha obra! Um acinte!  Portanto, já me retiro, Sr. Presidente.”

- Dr. Barroso, um momento, ainda não declarei encerrada a sessão. – interveio o colendo presidente do Senado.

Mas Barroso, de forma impávida, ergueu-se para o espanto do vetusto congressista. No divã, o coração no corpo adormecido de Barroso passava a bater com maior frequência. Mas, no sonho, antes de sair da sala, deu meia volta, retornou à mesa e tomou nas mãos uma taça do romannée-conti que estava de modo surreal sobre ela e, num ato desconcertante, a lançou sobre a cabeça do sinistro inquisitor. Repetiu assim o mesmo gesto de Martim Lutero e do próprio Ivan Karamazov.

Saindo apressado da sala do Congresso, interpelou seu motorista: "Que diabo! Aquele velho não tinha morrido em Angra? Mas vamos depressa, já está quase na hora do velório." Simultaneamente, o egrégio Dr. Ulisses, de pé, esbravejava brandindo republicanamente um opúsculo com a mão direita: "Dr. Barroso, é um descalabro! É uma afronta à Carta Magna, à carta da liberdade, dignidade, da justiça social do Brasil!"

Em seguida, como que por teletransporte, o futuro Ministro já estava defronte da Igreja da Candelária. Intrigou-se novamente: estava em pleno funeral do Arqueduque Otto von Habsburgo, ex-delfim do Império Áustro-Húngaro, mas no Rio de Janeiro! A cena era a recordação de um documentário assistido na televisão germânica há alguns anos. Nela, a porta da Igreja estava fechada e uns monges capuchinhos tentavam ingressar com o esquife imperial. Seguiu-se um diálogo entre os que estavam dentro e os que queriam entrar:

- Quem pretende entrar?

- O Imperador da Áustria; antigo Príncipe da Coroa da Áustria-Hungria; Príncipe Real da Hungria e da Boêmia, da Dalmácia, Croácia, Slavônia, Galícia, etc.[i]

- Não o conhecemos.

-Dr. Otto von Habsburgo – e em seguida fizeram um longo inventário das conquistas políticas e intelectuais do cadáver ilustre.

- Não o conhecemos. – E por fim o último apelo:

- Otto, apenas um homem, mortal e pecador, no mesmo caixão de cipreste do Sr. Wojtila!

-Então ele pode entrar.

Mal recomposto do espanto ante a cena absurda, Dr. Barroso viu um saltimbanco assomar na sua frente. Dançava com os dois braços semi-erguidos, as mãos espalmadas para o alto e ora pisando com o pé direito, ora com o esquerdo. Era inequivocamente o Chicó d’O Auto da Compadecida, mas tinha a cara de um sobrinho seu em idade colegial. Falou o histrião: “O imperador cumpriu sua sentença, encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a Terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre...” A memória profunda de Barroso conhecia a passagem do dramaturgo pernambucano de cor.

Dr. Barroso aborreceu-se mais uma vez e deu meia-volta para retirar-se. O intruso, porém, insistiu: “Dr., um momento! E’ verdade que a pálida morte toca com o mesmo pé os casebres dos pobres e as torres dos ricos, já sabiam os antigos, mas só as potestades que sabem se tornar miseráveis na hora mais lacrimosa, como o Dr. Otto, serão admitidas no interior da Candelária Celeste.”  Barroso resmungou, dando as costas a Chicó: “Só me faltava essa, o vagabundo de Suassuna citando Horácio!”

Um segundo depois, em sua mansão leblônica, despertou o futuro Ministro do Supremo. Era já advogado e parecerista milionário, se tornaria logo um dos homens mais poderosos da República, aplacando de vez a sua sede de nomeada, mas possuía também ambições filosóficas. Esfregando então os olhos, falou à esposa com o mesmo sorrisinho do famoso busto de Voltaire:

- Amor, já tenho um tema para a tese de filosofia pura que pretendo desenvolver:  “A Impossibilidade Ontológica da Origem Sobrenatural dos Sonhos.”