O
menino que, em meados da década de 1950, teve a ousadia de se declarar
agnóstico para a sua tradicional família mineira, e que não via a hora de
deixar o tédio de Passa Quatro, só aliviado com traquinagens pour empater les campagnards, tornou-se,
inegavelmente, um dos agentes políticos mais influentes das últimas cinco
décadas no Brasil, sempre presente no palco dos acontecimentos políticos mais significantes,
embora seu legado tenha sido extremamente negativo.
Como
não? Mal chegou a São Paulo, vindo de uma comunidade insignificante, logo e
tornou-se presidente da União dos Estudantes de São Paulo no período crítico
dos primeiros anos da Ditadura Militar. Namorou a revolucionária comunista mais
afamada de nossa História, nossa Jesenska-Pollac, Iara Iaverber, bela e
disposta a matar, que mais tarde se tornaria esposa do segundo revolucionário
mais famoso, Carlos Lamarca. Após o AI-5, comandou, juntamente com Vladmir Palmeira,
em 1968, um congresso estudantil clandestino, em clima e paisagem de Woodstock,
do qual resultou o maior comboio de estudantes presos da história nacional.
Preso, era tão importante para o movimento revolucionário que foi um dos
trocados pelo embaixador americano Charles Elbrick, num dos episódios icônicos
do período, o maior êxito do movimento revolucionário e o maior vexame da
Ditadura Militar. Deportado para o México, logo se tornou íntimo do Comandante
e despertava a inveja de seus companheiros pelos privilégios. Era então um dos
principais soldados do movimento revolucionário comunista mundial na América
Latina. Retornou ao Brasil e viveu aqui, clandestinamente, a maior parte de
década de 1970, sua década perdida, na qual não fez nada de relevante ao que se
saiba, tirante a façanha de ter permanecido vivo, quando a maioria dos exilados
que voltaram foram executados sumariamente pela “tigrada”, fato que gerou mais
suspeitas entre os companheiros de que pudesse ser informante. Mas eis que veio
a anistia, deu bye bye para a bela
loira do interior do Paraná com quem vivia em concubinato escondendo-lhe a
verdadeira identidade e retornou ao centro dos acontecimentos.
Em
janeiro de 1980 dá-se um dos encontros mais decisivos e emblemáticos da
história recente do país: Frei Betto leva-o para conhecer Lula. Foi naquela
tarde em São Bernardo do Campo que a estrela começou a subir. As três figuras
representam três das quatro forças sociais fundamentais na fundação do PT: o movimento
revolucionário comunista, a dissidência católica da teologia da libertação e o
movimento operário, representado ali pelo seu comando supremo, “O Clube do Mé”.
Faltou apenas um Professor marxista da USP ou UNICAMP. Daí em diante, o Zé, que
teve as mãos amarradas durante todos os anos 1970, nadou de braçada: foi o
principal responsável pela criação da máquina partidária mais poderosa e mais
profundamente enraizada na sociedade civil do país. Neste encontro histórico, a
virtú de Zé Dirceu encontrou sua fortuna. Prosseguiu: foi um dos responsáveis
por quase eleger Lula em 1989. E só não logrou elegê-lo porque Lula, em razão
de “pureza” ideológica, não aceitou as alianças que Dirceu propunha com gente
sórdida do PMDB. Eleito deputado federal, era tido no início dos anos 1990 como
um dos bastiões da ética do país, herói do combate à corrupção. Duelou
duramente com o apologeta de Collor, Roberto Jefferson. Investido
hipocritamente neste papel de udenista-petista, foi um dos principais
responsáveis pela queda do primeiro Presidente da República eleito pelo voto
direto e de diversos deputados federais. Pari
passu, montava já um vasto esquema de finaciamento público ilícito de seu
partido, sem o qual a agremiação não chegaria ao poder. Nas horas vagas
aproveitava para casar e descasar, dedicando-se também a diversas relações
extra-conjugais. Atazanou o quanto pode os governos Itamar Franco e Fernando
Henrique. Foi um dos inventores do Fora
FHC/Fora FMI que em 1998/2001 era o Fora Tudo das manifestações de junho de
2013. Elegeu Lula em 2002. Tornou-se o
único Ministro da Casa Civil com poderes de Primeiro Ministro, a ponto de Lula
reclamar: “O Zé Dirceu acha que o Governo é dele.” Tinha o poder de nomear e
exonerar quem quisesse do primeiro escalão do governo. Até que caiu em desgraça em 2005, quando seu
rival do início dos anos 1990, flagrado na via do reprochável, resolveu alcaguetar
o esquema de financiamento público ilícito do PT e o esquema de compra de
consciências partidárias nada lincolniana. Por muito pouco, não cumpriu a
promessa que fizera a sua mãe, Dona Olga: a de vestir a faixa de Presidente da
República.
Tudo
isso é narrado em detalhes na biografia “Dirceu” (Editora Record, 2013) de
Otávio Cabral. O livro, como é do início deste ano, não termina com a prisão do
nosso Verkovenski de sotaque caipira, mas com duas cenas prosaicas e ternas: numa,
Dirceu com a mamãe, velhina, no interior de Minas; noutra ele fazendo a filha
ninar através do skype. Mas, antes do
fim, temos uma cena de coluna social muitíssimo interessante: o agnóstico José
Dirceu, logo após a cassação de 2005, viaja a Santiago de Compostela na
companhia de Fernando Morais e Paulo Coelho. Mineiro debochado, se colocou a
fitar com um sorrisinho sardônico o mago falando de suas bruxarias.
Não
há como negar: desde sua suspeita eleição para a UEE de São Paulo, em 1966, até
2005, Zé Dirceu sempre meteu a mão em nossa história e deixou digitais. Se a
história humana é feita pelas decisões de seres humanos concretos, na linha de
Max Weber, e não por forças abstratas, na linha Hegel, Marx e Braudel, ele é,
desde 1960, um dos principais co-autores da triste história destas plagas.
Dificilmente o PT, a máquina partidária mais poderosa do país, teria se tornado
tão forte sem ele. Diante desta constatação, é indubitável que se trata de uma
das biografias políticas mais importantes dos últimos 50 anos, ainda que para
ser apresentada à juventude como exemplo do que não fazer.
Mas,
certamente, o Zé não terá melhor sorte no tribunal da história do que a que
teve perante o STF. A não ser que queiram forçar a barra e transformá-lo num
Mirabeu de Ortega y Gasset, ou coisa semelhante.
Em
seu opúsculo, “Mirabeau, ou o Político”, o filósofo madrilenho, vaca sagrada
dos conservadores, faz sua apologia deste ícone moderado da Revolução Francesa.
Mirabeau, como Dirceu, fez o diabo. Corrompeu, fez vergonhas financeiras,
mentiu, trapaceou, mas por um motivo nobre: alcançar uma posição política
privilegiada para defender uma Monarquia Constitucional que pudesse colocar
freios ao Terror, ou, nas palavras de Gasset, fazer a revolução e a
contra-revolução. Progredir e conservar. Mas, uma vez que o caminho de Mirabeau
ao Palácio foi bloqueado, ele “inveredou pelo secreto e pelo tortuoso.” Homens
excepcionais assim, “magníficos animais”, defende Gasset, estariam dispensados
da moralidade comum ou da pequena moralidade:
“Em vez de censurar o grande homem
porque lhe faltam as virtudes menores e padece de pequenos vícios, em vez de
dizer que ‘não há grande homem sem virtude’, em vez de concordar com o homem
comum, seria oportuno meditar sobre o fato, quase universal, de ‘não há grande
homem com virtude.”
Lincoln
comprou consciências no Capitólio para aprovar a 13ª. Emenda e abolir a
escravidão. Mas qual era o motivo nobre de Dirceu para fazer o que fez? Nas
primeiras décadas, era o Cubão. Depois, o que? A justiça social? O Bolsa
Família? O fim da pobreza? Falta-lhe o motivo nobre ou a sua consumação para
que a história o absolva como um Mirabeau de Ortega y Gasset. Sobra apenas a libido dominandi. Uma vasta história de
fraudes sem nenhum grande resultado.
Mas
essa relevância histórica toda que atribuo a Zé Dirceu não aparece na obra mais
vívida sobre os anos de chumbo lançada na última década: a tetralogia de Elio
Gaspari, compostas pelos livros “As Ilusões Armadas ou A Ditadura
Envergonhada”; “As Ilusões Armadas II ou A Ditadura Escancarada”; “O Sacerdote
e o Feiticeiro ou A Ditaduta Derrotada” e “O Sacerdote e o Feiticeiro II ou A
Ditadura Encurralada”. Os dois primeiros de 2002, os dois últimos de 2003. Na alentada obra de história dos bastidores,
Dirceu só aparece na famosa fotografia em que está prestes a embarcar para o
exílio com os companheiros. Nem mais uma menção.
Tal
como ocorre com a biografia de José Dirceu, em as “Ilusões Armadas” e “O
Sacerdote e o Feiticeiro” temos a História contada sob a perspectiva que
realmente importa: a dos pensamentos, dos atos e das decisões concretas de
pessoas concretas, e não sob a perspectiva de causas impessoais. A obra partiu
de um trabalho acadêmico em que Gaspari intentava, no Wilson Center for
International Schoolars, de Washington, compreender porque Ernesto Geisel e
Golbery do Couto e Silva, o Alemão e o Corca, o Sacerdote e o Feiticeiro, pelos
quais Gaspari não esconde a simpatia e a amizade, decidiram desligar os aparelhos
que mantinham a ditadura viva. Só no 4º. e no 5º. Volume, contudo, o autor se
dedica a relatar a série de atos e decisões destes Generais que culminaram na
derrocada do regime.
Trata-se
de uma história autenticamente imparcial, a-ideológica, e impiedosa. Tanto com
a esquerda quanto com a direita. O mal naquele momento era o que vem expresso
no título dos dois primeiros tomos: “as ilusões armadas.” A ilusão de que a
esquerda radical poderia chegar a uma revolução comunista no Brasil pelas
armas; a ilusão da direita de que precisaríamos de um golpe militar e da
abolição da legalidade para combater esse mal. No meio, temos a esquerda e a
direita democráticas que foram tiradas do jogo.
Os
preparativos para a revolução comunista financiada por Cuba no Brasil começam
ates de 1964, com as viagens de Francisco Julião à Cuba, onde foi convencido
pelo Comandante a iniciar um foco guerrilheiro na terra de Santa Cruz. Nos
primeiros anos do golpe militar, o comando da sucursal brasileira da revolução
continental passa a Leonel Brizola, “El Ratón” (esse apelido Gaspari lhe poupa.
Reza a lenda, Brizola embolsou dinheiro de Cuba, motivo pelo qual o Comandante
lhe dedicou a alcunha). Neste segundo momento, um dos principais focos foi
montado na serra do Caparaó. Fiasco total. Com o AI-5, e sob o pretexto de
combatê-lo, surge uma miríade de organizações guerrilheiras, a principal delas
comandada por Carlos Marighela, a Aliança Libertadora Nacional - ALN. E’ o
período critico da luta armada.
Esse
velho comunista ítalo-baiano, o mais ousado e sanguinário de nossos comunistas,
foi executado numa emboscada nas ruas de São Paulo, pelo sádico Dr. Fleury, com
intenso prazer. Era o inicio da derrocada. Esta terceira fase do movimento
revolucionário dura de 1968 a 1974 com a morte do último homem no Araguaia,
onde se instalara a guerrilha rural do PC do B.
Gaspari
não é condescendente com os crimes desta inútil tentativa revolucionária. Mas
os relatos de abusos pesam mais no lado da balança em que está o regime militar.
Os principais vilões, porem, não estão no alto escalão: Castelo Branco era um
genuíno democrata titubeante para quem a ditadura devia durar apenas 2 anos,
com a finalidade de apenas concertar as coisas e eliminar comunistas e
golpistas. Costa e Silva, este sim, era um burrão perigoso com sangue nos olhos,
mas so se decidiu pelo AI-5 pressionado pela linha dura. Médice, Geisel e
Figueiredo não acreditavam na democracia: o povo não sabia votar. Jânio era a
maior prova. Geisel acreditava sim que uma elite de melhores homens,
tecnocratas como seu parceiro Golbery, deveriam decidir os rumos da nação, sem
consulta popular. Geisel também era teoricamente favorável `a tortura em casos
excepcionais. Contudo, Geisel, Golbery e Figueiredo pretendiam devolver a
democracia plena ao Brasil e prepararam o caminho para a abertura democrática.
Principalmente Geisel e Golbery, Figueiredo era só uma cria dos dois.
Pois
bem, os maiores vilões estavam no meio: a linha dura. Esta era representada principalmente
pelos médios oficiais: majores, tenentes-coronéis, coronéis, generais com poucas
estrelas. Foram eles que forçaram cada guinada mais autoritária: o
prolongamento do governo de Castelo Branco, o AI-5, a lentidão da abertura.
Cometiam atentados e quarteladas para desestabilizar o Governo sempre que este
apontava para o relaxamento do regime. A estes atos de desestabilização do
governo com vistas ao endurecimento sem ternura, Gaspari da’ o nome de
“anarquia.” Foram estes “anarquistas” que sempre deram respaldo à “tigrada”
(sargentos, tenentes e capitães condutores de inquéritos militares e delegados
de polícia civil) para torturar, executar sumariamente, enfim, fazer o terror
de direita. Queriam sempre o recrudescimento da ditadura. Sempre mais sangue de
comunistas. Chegaram a lançar um jornal com a figura do moderado Golbery
enforcado. Golbery, ídolo de Glauber Rocha, que o compreendeu como ninguém, era
o General mais odiado pela tigrada e o General que mais a odiava.
Os
Generais de alto escalão, a cúpula do governo é que punham freios ao apetite de
sangue da tigrada, mas lavaram as mãos um sem-número de vezes. Segundo a tese de
Gaspari, foi Geisel quem defenestrou de vez a linha dura e o episódio mais
significativo teria sido a demissão de seu Ministro do Exército, Sílvio Frota,
o líder da tigrada.
Roberto
Campos, Ministro do Planejamento de Castelo Branco, e um dos responsáveis pelo
milagre econômico, diz em suas memórias, “Lanterna na Popa”: “tínhamos duas
escolhas: anos de chumbo ou rios de sangue.” Será mesmo? Tertium nom datur? Gaspari não responde à questão, mas dá a
entender que, definitivamente, não!
A
questão de Roberto Campos é a fundamental sobre 1964: o golpe, as cassações, a
suspensão do habeas corpus e dos
direitos fundamentais, a censura, a tortura, as execuções sumarias, a
ilegalidade eram realmente necessários para a contenção das pretensões
revolucionárias da extrema esquerda que poderiam, de fato, resultar em rios de
sangue? Um governo democrático, dentro das regras do Estado Democrático de
Direito não poderia realizar o mesmo com o idêntico êxito?
Não
se sabe. Bem, há indícios de que se não houvesse um golpe de direita, um golpe
de esquerda pudesse ser intentado, facilitando as coisas para a
extrema-esquerda. Jango, esse democrata incontroverso, tinha suas pretensões
golpistas, narra Gaspari no primeiro tomo.
O
fato é que a ditadura militar aboliu, com uma eficiência ímpar na América
Latina, e com menos violência em comparação como outras ditaduras
latino-americanas, a chance de uma revolução comunista armada no Brasil. E não
deixou resquícios. Mas para isso cometeu atrocidades. A tortura campeava. A
execução sumária de exilados que retornavam clandestinamente ao Brasil, da qual
Dirceu, escapou, era norma tácita. No Araguaia, o jus bellum, o conjunto de normas fundamentais da guerra, foi
suspenso: a ordem era exterminar todos, mesmo os que se rendessem. Mesmo os
meramente suspeitos. E assim foi feito. Como em Canudos, não sobrou um só!
Políticos inofensivos foram caçados. Inocentes foram martirizados. Graças a
tudo isto, não temos hoje uma FARC atuando em território nacional. Mas não
poderíamos ter contido as pretensões revolucionárias sem atrocidades e dentro
do estado democrático de direito?
Dizer
que os anos de chumbo foram necessários para se evitar os rios de sangue é uma
suposição. Mas a História é feita de apostas, de decisões sobre o incerto, com
base em conjeturas sobre o futuro imprevisível. O conservador americano Patrick
J. Buchanan acusa Churchill de responsável por duas Guerras Mundiais “desnecessárias”
(vide “Hitler, Churchill e a Guerra
Desnecessária”, Nova Fronteira, 2008). Hiroxima e Nagazaki eram mesmo
necessárias? Truman e Churchill apostaram que sim. Chega sempre o momento em
que os homens que decidem o destino do mundo, conjeturando que a inação ou uma
decisão mais branda seria desastrosa, decidiram-se por ações drásticas. E o
homem político, nos diz Ortega y Gasset, é aquele que não tem escrúpulos: sua função
é, quando todos vacilam, decidir sem medo, dó ou piedade.
O
menino de Passa Quatro acabou se tornando um destes “inescrupulosos”, mas que
grande obra desculpa sua falta de escrúpulos?